Quando
eu criei esse termo eu pensava muito especificamente em um tipo de indivíduo
bastante comum em nossa sociedade, aquele que é pobre, porém, acredita nos
conceitos e princípios produzidos pelas elites para justificar as desigualdades
como algo natural. É um tipo de pessoa que se acha da elite e pensa que logo
irá melhorar de vida, que aquela sua situação é passageira e que as causas
sociais de seus problemas vem não da exploração, mas da quantidade de conquistas
conseguidas pelos sindicatos e pelos direitos humanos, que atrapalham o andar
natural das coisas e não o deixa sair da pobreza. Trata-se de um tipo de
indivíduo tão colonizado culturalmente que ele pensa pela lógica daquele que
lhe causa a condição de pobreza e se vê espelhado nesse, se tornando distante
de sua própria condição social, que para ele é uma questão meramente
momentânea. Ele arraiga em si todo o discurso das elites e o corrobora, se
vendo como parte integrante daquele grupo social, como superior aos demais
pobres que vivem ao seu redor e que possuem as mesmas condições que ele.
Em
outras palavras, é um indivíduo que mesmo sendo pobre, sendo de origem humilde,
se acha superior aos demais a sua volta, se acha mesmo um indivíduo especial,
que tem mais capacidade de raciocínio, que tem maior censo crítico e, ao mesmo
tempo, corrobora todos os discursos da direita e costuma ter aversão ao povo e
a tudo o que é do povão, a tudo o que é popular. Ele valoriza coisas
estrangeiras como as músicas, filmes, cultura, acha o Brasil e o restante do
terceiro mundo um lugar ruim, patético, que não é sério, sempre comparando
esses lugares com países como o Canadá, Eua, Suécia, Suíça e outros países, não
levando em conta o processo que fez esses países se desenvolverem e nem os
processos históricos da produção da sociedade brasileira.
Esse
indivíduo também tem um grande ódio para com os movimentos sociais, com as
esquerdas e crê em uma meritocracia em que basta que o indivíduo se esforce
para conseguir tudo o que deseja, como se não houvesse qualquer tipo de
desigualdade e de diferença de oportunidades entre o filho de um gari e o filho
de um médico. No fim das contas ele se acha superior aos demais, se vê como um
pobre que logo irá vencer na vida ou que ainda não venceu devido às
implantações de cotas e de coisas do tipo, o que estaria barrando a sua
ascensão.
O
termo foi inspirado em um personagem clássico do seriado mexicano Chaves, muito
popular no Brasil. Esse personagem, Dona Florinda, vive de aluguel em um pobre
cortiço, sobrevivendo com o filho da pensão deixada pelo seu marido, que
morrera no exercício do ofício de marinheiro. É uma senhora que passa boa parte
do dia ocupada com os seus afazeres domésticos, principalmente estendendo roupa
no varal comum da vila (onde ocorre a maior parte das cenas da série). Ela usa
rolinhos na cabeça e um vestido simples, com um avental. Mesmo vivendo nessas
condições, ela se entende como uma pessoa da alta sociedade, debocha e se
desfaz das pessoas que moram ao seu redor por se entender como parte da elite e
ensina isso ao seu filho, usando muitas vezes uma frase clássica dita ao seu
filho: “Não se misture com essa gentalha!”.
No
Brasil há muita gente com uma forma de pensar muito semelhante, o que eu
comecei a chamar de Complexo de Dona Florinda. Trata-se de pessoas de origem
pobre e que ainda vivem em certo grau de pobreza, mas que abominam as pessoas
ao seu redor, se entendem como diferentes, se acham mais inteligentes, mais
estudadas, (quase nunca são realmente mais estudadas, mesmo assim se julgam
mais instruídas), superiores, com uma compreensão mais clara do mundo.
Eles
entendem as pessoas ao seu redor como ignorantes e manipuláveis. No caso do
Brasil, muitas vezes ainda existe a questão “racial”, ou seja, o indivíduo
ainda se entende como branco, mesmo que seu rosto no espelho mostre outra
coisa.
Então,
para se diferenciarem eles adotam o discurso da elite, para serem como a elite,
para se sentirem como a elite. Passam a concordar com os pensadores da elite,
com os jornais, jornalistas e revistas que as elites possuem e passam a dizer o
mesmo discurso das elites e a votar nas elites. Não é por acaso que vemos alguns
pobres contra o bolsa família, contra o Prouni, contra o Fies, contra o Minha
Casa, Minha Vida, para não falar em outras questões, ao mesmo tempo em que
acham uma boa medida as privatizações, desejam pena de morte e adoram criticar
qualquer medida que tenha por objetivo dar oportunidade aos mais pobres.
Esse
é o complexo de Dona Florinda, uma situação em que o pobre passa a pensar como
o rico, defendendo as ideias da classe média e dos ricos, ideias que em vários
sentidos vão prejudicá-lo no futuro, que vão tirar seu emprego, a sua bolsa de
estudos ou a de seu filho, que vão criar arrocho salarial exatamente para ele,
que ganha salário mínimo. Mesmo assim ele continua, pois ele se entende
diferente dessa situação. Por fim ele vota no rico e desenvolve um grande ódio
a quem defende direitos iguais aos mais pobres.
Átila Siqueira é Historiador, Bacharel em História pela PUC-MG e Mestrando em História, pelo programa de pós-graduação em História da UFMG, na linha de História e Culturas Políticas.
Átila Siqueira é Historiador, Bacharel em História pela PUC-MG e Mestrando em História, pelo programa de pós-graduação em História da UFMG, na linha de História e Culturas Políticas.