Por Jarid Arraes.
Seja
pelo preconceito de classe ou pela intolerância diante de letras com
conteúdo sexual explícito, as mulheres do funk são grandes vítimas da
misoginia e do racismo. Esse grande repúdio contra as artistas femininas
do funk é intimamente relacionado à repulsa às mulheres negras, não
somente porque a maioria das funkeiras são negras, mas porque o funk tem
raizes históricas e é intimamente ligado à cultura negra brasileira.
No entanto, há pelo menos um exemplo
atual de mulher que veio do funk e é amplamente aceita e celebrada na
mídia: a Anitta. Enquanto as outras artistas têm suas raízes no funk
tradicional com letras explícitas, a Anitta é apresentada como uma
funkeira voltada para a cultura pop, com uma produção higienizada e
pronta para o consumo. Artistas como a Anitta são reposicionadas em uma
nova classe social, que embranquece suas expressões artísticas e as
torna muito mais “adequadas” para a televisão brasileira.
Há divergências sobre os motivos que
levam a Anitta a ter mais sucesso que outras artistas similares. Alguns
ativistas acreditam ser devido a uma suposta branquitude. No entanto,
enxergar Anitta como uma pessoa branca demonstra a naturalização do
processo de embranquecimento racial. Em uma sociedade que tem como
branca qualquer pessoa miscigenada de pele clara, o caso de Anitta
merece no mínimo uma reflexão.
É preciso entender que a identidade que
Anitta ou outras artistas possuem sobre suas cores é algo subjetivo,
construído ao longo dos anos sob influência da sociedade. Não adianta
relativizar o reconhecimento racial e reduzi-lo a uma questão de
afirmação, pois compreender-se como negra não é um fator decisivo para
que alguém seja tratada como negra; para isso acontecer, é necessário
que a sociedade também consiga ver a negritude nessa pessoa.
A Anitta é um exemplo de uma mulher
miscigenada que foi embraquecida e “enriquecida” para que o seu trabalho
artístico fosse valorizado. A aparência de Anitta vem se tornando cada
vez mais diferente desde a sua fama, com tratamentos de clareamento
sobre uma imagem cada vez mais elitizada. Sabendo disso, vale a
reflexão: será que Anitta é aceita por ser reconhecida como uma mulher
branca ou terá embranquecido em busca de aceitação? Se outras funkeiras
passassem por um processo de embraquecimento e elitização classial,
seriam elas abraçadas pelos programas da televisão aberta nos mais
diversos horários?
Esse processo não diz respeito somente
ao embranquecimento de características físicas, como cabelos lisos, pele
clara e nariz fino, mas está também relacionado à repressão da
sexualidade feminina. O funk bem aceito socialmente é aquele que
constrói uma sensualidade feminina tolerável, que não intimida o
machismo. E a sexualidade feminina que é aceita é aquela que não causa
choques. A Valesca Popozuda é um bom exemplo: embora em sua aparência
atual ela seja vista como uma mulher “morena clara”, ou em alguns casos
até mesmo branca, o modo como lida com o sexo sem eufemismos faz com que
sua expressão artística seja repudiada socialmente.
Artistas femininas sofrem uma imposição
de limite sobre a sensualidade, que só pode ser expressada de modo
comedido e elitizado: uma mulher que rebola na MTV é muito mais aceita
artisticamente do que aquela que rebola em um baile funk no morro. É
extremamente importante notar, no entanto, que nenhuma mulher é
plenamente aceita ao expressar sua sexualidade. Ao final do dia, todas
essas mulheres têm algo em comum: todas elas são transformadas em
objetos de consumo.
Ser consumida, nesse caso, significa
oferecer a sensação de controle ao público masculino. A mulher objeto de
consumo deve expressar sensualidade, mas não ao ponto de fazer com o
que o homem se sinta ameaçado, nem na eminência de ser “traído”. Caso a
mulher expresse sua sexualidade de forma objetiva e direta, ela é tida
como uma “vadia” indigna de valor e seriedade. A mulher negra,
especificamente, carrega nos ombros o estereótipo de “mulher consumível”
e descartável, para ser “usada” e jogada fora, ao contrário do produto
mais cotado e duradouro: a mulher branca. Essa é a realidade da
misoginia: as mulheres são tratadas como mercadorias, algumas mais
valorizadas do que outras.
Embora a questão da branquitude de
Anitta seja debatível perante nossos olhos, o problema é muito mais
profundo e está entranhado em diversas nuances da sociedade. A questão
não é atribuir uma identidade a Anitta ou outras artistas brasileiras,
mas sim levantar o questionamento sobre a possibilidade de sucesso e a
aceitação social dependerem de uma branquitude, seja ela real ou
imposta. Uma pele clara e um cabelo liso combinados com uma sexualidade
moderada e restrita são necessárias para o sucesso das mulheres.
Seja ao chamar mulheres negras de
morenas ou ao aceitar o “branco” como padrão, o racismo articula com a
violência imposta sobre as classes desfavorecidas e encontra seu apogeu
quando atua de forma machista. É preciso trazer todas essas nuances para
o debate e trabalhar para destruir essas violências. A forma como as
opressões atuam não é sempre tão óbvia, tampouco tão simplista. São
necessárias uma dialética e uma visão abrangente, não polarizada, para
que possamos transformar nossa cultura e conquistar a dignidade que é
usurpada de tantas mulheres.
Jarid Arraes é
educadora sexual e especialista em sex toys, sou estudante de
Psicologia, feminista e ativista pelos Direitos Humanos. Trabalho
voluntariamente com o grupo FEMICA – Feministas do Cariri e com o FQC –
Feminismo Que Cola, realizando ações de educação popular sobre
cidadania, diversidade sexual e de gênero, direitos da mulher e questões
raciais. Escrevo sobre tudo isso no meu blog pessoal Mulher Dialética e
mantenho o portal Guia Erógeno, um site com temática abrangente sobre
sexualidade.
Matéria original: http://revistaforum.com.br/blog/2013/08/anitta-embranquecimento-e-elitizacao/?fb_action_ids=10201664451072043&fb_action_types=og.likes&fb_ref=.Ug-9uuMZgqI.like&fb_source=other_multiline&action_object_map=[522144767855143]&action_type_map=[%22og.likes%22]&action_ref_map=[%22.Ug-9uuMZgqI.like%22]